Do Ônus Probandi no Processo Administrativo de Trânsito: Análise sob a Perspectiva da Advocacia de Defesa

O princípio do ônus probandi (dever de provar) no processo administrativo brasileiro, especialmente no âmbito do Direito de Trânsito, estabelece que cabe ao interessado — geralmente o condutor ou proprietário do veículo — a responsabilidade pela produção das provas que sustentem suas alegações. Essa regra, que se espelha no artigo 373 do Código de Processo Civil (CPC), é aplicada com frequência no Direito Administrativo e foi incorporada à Lei 9.784/99, que regula o processo administrativo federal.

Presunção de Legitimidade e Ônus da Prova

No Direito Administrativo, prevalece a presunção relativa de legitimidade e veracidade dos atos administrativos, atribuindo a estes uma credibilidade inicial que coloca o ônus da prova sobre o administrado. Tal presunção implica que os atos emanados pela administração pública são presumidamente corretos até que se prove o contrário. Porém, essa presunção não é absoluta e admite a relativização — ou seja, cabe ao interessado demonstrar a improcedência da penalidade ou da medida administrativa que lhe foi imposta.

Entretanto, é necessário considerar que tal presunção, por vezes, coloca o administrado em uma posição desvantajosa, especialmente diante de infrações onde seria exigida a chamada prova negativa — uma impossibilidade prática em diversos casos. Por isso, a doutrina e a jurisprudência vêm defendendo que o ônus da prova deve ser interpretado de modo a preservar os direitos fundamentais e o devido processo legal (due process of law), especialmente quando está em jogo a privação de direitos ou a imposição de sanções.

A Inversão do Ônus da Prova e a Atuação Impessoal da Administração

A doutrina majoritária sustenta que, embora o interessado deva inicialmente produzir as provas de suas alegações, isso não exime a administração de buscar a comprovação dos fatos contraditórios ou confirmatórios. Esta função instrutória da administração decorre do princípio da impessoalidade, que exige que a autoridade administrativa atue com neutralidade, buscando sempre a verdade material (veritas materialis) em prol da correta aplicação da norma.

Essa postura é especialmente relevante no contexto das multas e sanções de trânsito, onde muitas vezes a presunção de legitimidade dos autos de infração é considerada suficiente para atribuir responsabilidade ao condutor. No entanto, essa prática pode representar uma afronta aos direitos do administrado, especialmente nos casos em que a administração deixa de buscar documentos ou evidências que poderiam confirmar ou afastar os fatos alegados. Nesse sentido, a Resolução nº 900/2022 do CONTRAN e o artigo 37 da Lei 9.784/99 são claros ao estabelecerem que o órgão administrativo deve suprir a ausência de documentos que estejam em sua posse ou que possam ser obtidos de ofício.

Deveres Instrutórios da Administração e o Processo Justo

A atuação imparcial da administração exige que, caso os documentos necessários estejam na posse do próprio órgão ou de outra entidade pública, a administração providencie sua obtenção ex officio (por iniciativa própria). Este é um dever implícito e vinculante, pois está diretamente relacionado ao princípio da moralidade e da eficiência no exercício da função administrativa. Assim, nos termos da Resolução nº 900/2022 do CONTRAN, o administrado não é obrigado a produzir provas que estejam exclusivamente na posse da administração.

Essa imposição é, na prática, uma forma de inversão do ônus da prova, que visa proteger o administrado contra possíveis abusos e omissões do poder público. A omissão da administração em obter as provas ou informações pertinentes constitui um ato falho, passível de representação por abuso de autoridade.

Limites ao Poder de Requisição e o Combate à Litigância Procrastinatória

Apesar das garantias impostas ao administrado, é necessário também reconhecer os limites dessa prerrogativa para evitar abusos que possam prolongar desnecessariamente o processo administrativo. A requisição de documentos pelo administrado não pode se converter em um artifício procrastinatório. Desse modo, o interessado deve fundamentar seu pedido, demonstrando a relevância e a necessidade da documentação requisitada para a análise da matéria em questão.

Em casos onde o órgão responsável não seja o detentor da documentação, é comum que o próprio interessado possa solicitá-la diretamente à outra entidade, juntando ao processo uma cópia do pedido e pleiteando a suspensão do processo até que se complete a instrução probatória. Dessa forma, garante-se uma razoabilidade processual, assegurando o direito à prova sem prejudicar o andamento do feito administrativo.

Da Busca pelo Justo Desfecho e o Princípio do In Dubio Pro Reo

Um princípio que tem ganhado força na advocacia de defesa no campo do Direito Administrativo de Trânsito é o in dubio pro reo, que recomenda que, em caso de dúvida razoável quanto à materialidade ou autoria de uma infração, deve-se favorecer o administrado. Este princípio, oriundo do Direito Penal, tem sido aplicado com prudência, especialmente quando há uma insuficiência probatória na formação do convencimento da administração.

A aplicação do in dubio pro reo no processo administrativo de trânsito decorre da necessidade de garantir que nenhuma sanção ou penalidade seja aplicada sem que haja um grau de certeza mínimo quanto à procedência dos fatos. Assim, ainda que a prova produzida pelo requerente seja considerada insatisfatória, cabe ao órgão administrativo buscar a solução justa, promovendo a integração probatória de ofício para preencher eventuais lacunas.

Considerações Finais: Uma Defesa Jurídica Equilibrada e Justa

A advocacia de defesa em processos administrativos de trânsito deve estar pautada pela compreensão plena do ônus probatório e pela aplicação de princípios que garantam a proteção dos direitos fundamentais do administrado. O Direito de Trânsito, embora seja um ramo essencialmente regulamentar, deve primar pela justiça e pela razoabilidade, reconhecendo as limitações práticas e fáticas que o cidadão enfrenta na produção de provas.

A busca pelo equilíbrio no ônus probatório não implica a desconsideração da presunção de legitimidade dos atos administrativos, mas sim o reconhecimento de que esta presunção não pode ser absoluta. Quando o processo administrativo não atende às exigências do contraditório e da ampla defesa, a advocacia deve intervir com vigor para garantir que o administrado não seja punido injustamente.

Assim, o sistema probatório no Direito de Trânsito deve ser orientado não apenas por uma visão de proteção do interesse público, mas também pelo compromisso de assegurar uma atuação administrativa justa, transparente e fundamentada. A defesa equilibrada e diligente do administrado é, portanto, uma garantia não apenas de direitos individuais, mas de um sistema administrativo mais eficiente e confiável, que reflita o compromisso do Estado com a justiça e a moralidade pública.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.