A Inversão do Ônus da Prova como Ferramenta Estratégica no Contencioso de Trânsito

📘 A Inversão do Ônus da Prova como Ferramenta Estratégica no Contencioso de Trânsito


✳️ Epígrafe

“A presunção de legitimidade do ato administrativo não pode ser escudo para a arbitrariedade, mas sim convite à transparência.”


1. Introdução – O Desequilíbrio Processual e a Busca pela Paridade de Armas

O litígio de trânsito contra a Administração Pública nasce em um cenário de desequilíbrio estrutural. De um lado, o órgão autuador, amparado pela presunção de legitimidade e pela máquina burocrática; de outro, o cidadão, a quem cabe, em regra, provar o erro estatal.

Essa assimetria compromete a paridade de armas processual, transformando a defesa em um desafio quase impossível. É nesse contexto que a inversão do ônus da prova assume papel estratégico: obriga o órgão público a demonstrar a regularidade de seus atos, devolvendo equilíbrio e efetividade ao devido processo legal.

📘 Nota Doutrinária:
“A presunção de legitimidade é relativa e desaparece diante de indícios de irregularidade. A Administração deve demonstrar a correção de seus atos sempre que impugnados.”
Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Direito Administrativo, 2022.


2. Fundamentos Jurídicos da Inversão do Ônus da Prova

2.1. Base Legal Principal

O Código de Processo Civil, em seu art. 373, § 1º, dispõe:

“O juiz pode inverter o ônus da prova, a requerimento da parte, quando, a critério do magistrado, for verossímil a alegação do requerente ou este for hipossuficiente, considerando-se a dificuldade de produção da prova.”

Do dispositivo extraem-se dois critérios:

  1. Verossimilhança das alegações;

  2. Hipossuficiência técnica do particular.

2.2. Fundamentos Constitucionais Correlatos

  • Paridade de Armas (art. 5º, LXXIV, CF): assegura igualdade entre cidadão e Estado.

  • Devido Processo e Ampla Defesa (art. 5º, LIV e LV): obrigam a Administração a provar o fundamento de suas sanções.

  • Eficiência Administrativa (art. 37, caput): impõe transparência e manutenção de registros probatórios acessíveis.

📑 Nota Interpretação:
A conjugação desses princípios transforma a inversão do ônus da prova de mera faculdade judicial em direito subjetivo do administrado, quando comprovada a dificuldade técnica de acesso à prova.


3. Requisitos Essenciais para a Aplicação da Inversão

3.1. A Hipossuficiência Técnica do Particular

A hipossuficiência, no contencioso de trânsito, não é econômica, mas informacional.
Somente o órgão público detém acesso a laudos de aferição de radares, certificados de etilômetros e registros de manutenção.
Exigir do cidadão que prove tais elementos seria impor ônus diabólico — uma prova impossível.

🧩 Exemplo:
Como o condutor provaria a calibração do radar pelo INMETRO? Ou a integridade do bafômetro utilizado na fiscalização?
Tais documentos estão sob controle exclusivo da Administração.

3.2. A Verossimilhança das Alegações

O requisito da verossimilhança exige indícios mínimos de irregularidade.
Basta demonstrar plausibilidade para justificar a inversão.

Exemplos de indícios:

  • Notificação expedida fora do prazo legal (art. 282 § 6º, CTB);

  • Ausência de sinalização visível no local da infração;

  • Inexistência de prova de calibração válida do equipamento eletrônico.

📚 Nota Doutrinária:
“A verossimilhança é juízo de probabilidade; exige aparência de verdade, suficiente para deslocar o ônus da prova.”
Fredie Didier Jr., Curso de Direito Processual Civil, 2023.


4. A Atuação Estratégica do Advogado

Etapa 1 – Petição Inicial: Formulação do Pedido

O pedido de inversão deve constar expressamente, com fundamentação técnica e jurídica.
Modelo de redação prática:

“Requer-se, desde já, a inversão do ônus da prova (art. 373, § 1º, CPC), considerando a hipossuficiência técnica do autor e a impossibilidade de acesso aos documentos sob guarda exclusiva do órgão autuador.”

Etapa 2 – Fase Instrutória: Exigência de Provas

Com base no deferimento (ou no princípio da cooperação processual), exigir que a Administração apresente:

  • Certificados de calibração de radares e etilômetros;

  • Relatórios de manutenção dos equipamentos;

  • Escalas de serviço e identificação do agente autuador;

  • ARs de notificações.

Etapa 3 – Sustentação Oral e Memoriais

Caso o órgão não junte os documentos, explorar a omissão como confissão administrativa.

⚖️ Jurisprudência Aplicável:
STJ, REsp 1.818.400/SP, Rel. Min. Herman Benjamin, 2021
“Compete à Administração comprovar a legalidade de seus atos quando contestados, não podendo exigir do administrado prova negativa.”


5. Estudo de Caso: Multa por Excesso de Velocidade

Documento Solicitado Efeito da Não Apresentação
Laudo de calibração do radar Nulidade do ato por vício de motivo.
Relatório de sinalização Ausência de tipicidade material.
Aviso de Recebimento (AR) Nulidade por cerceamento de defesa.
Registro de manutenção Falta de confiabilidade do equipamento.

💬 Síntese:
A inversão desloca o debate: não se trata mais de provar a inocência do condutor, mas de exigir que o DETRAN prove a regularidade da acusação administrativa.


6. Conclusão – A Advocacia de Trânsito como Defesa do Cidadão

A inversão do ônus da prova é mais que técnica processual: é instrumento de justiça procedimental.
O advogado especializado, ao requerê-la corretamente, impõe à Administração o dever de transparência e efetiva a tutela jurisdicional.

✒️ Reflexão Final:
O verdadeiro papel do advogado de trânsito não é apenas contestar multas, mas reafirmar a cidadania processual frente ao poder punitivo do Estado.


Referências

  • DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. São Paulo: Atlas, 2022.

  • DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil. Salvador: JusPodivm, 2023.

  • ADAM, José Ricardo. Manual Prático do Contencioso de Trânsito – Estratégias Processuais e Teses Avançadas. São Paulo: Adam Advocacia Editora, 2025.

  • STJ – REsp 1.818.400/SP, 2ª Turma, Rel. Min. Herman Benjamin, julgado em 14/09/2021.