A Recusa ao Teste do Etilômetro na Ausência de Sinais de Embriaguez

⚖️ A Recusa ao Teste do Etilômetro na Ausência de Sinais de Embriaguez
Teses Defensivas à Luz do Direito Constitucional à Não Autoincriminação

1. Introdução – A colisão entre o poder de punir e a liberdade individual
No cenário do Direito de Trânsito, poucos temas expõem com tanta clareza o embate entre o poder de polícia administrativa e as garantias constitucionais fundamentais quanto a chamada Lei Seca.
A recusa ao teste do etilômetro (bafômetro), quando desacompanhada de quaisquer sinais de embriaguez, projeta uma tensão nuclear entre o dever estatal de fiscalizar e o direito do cidadão de não se autoincriminar.
A tese central deste capítulo é que a ausência de sinais de embriaguez é elemento essencial para a formulação de uma defesa técnica eficaz contra autuações por recusa, pois a aplicação automática das penalidades do artigo 165-A do CTB sem a demonstração de alteração da capacidade psicomotora viola o princípio da proporcionalidade e o núcleo do devido processo legal.

2. O Duplo Regime Sancionatório do Código de Trânsito Brasileiro
O Código de Trânsito Brasileiro (Lei nº 9.503/1997) instituiu dois regimes autônomos de responsabilização:
  • um para a embriaguez comprovada (art. 165);
  • outro para a mera recusa em se submeter aos testes (art. 165-A).
Essa distinção é decisiva para o êxito da defesa e para o correto enquadramento jurídico do fato.
2.1. Artigo 165 – Dirigir sob a influência de álcool
Configura-se mediante prova objetiva de embriaguez, que pode ser demonstrada por:
  1. teste do etilômetro;
  2. exame de sangue;
  3. constatação de sinais notórios de alteração da capacidade psicomotora;
  4. prova testemunhal ou audiovisual.
Trata-se, portanto, de uma infração de resultado, que exige demonstração efetiva da alteração física ou mental.
2.2. Artigo 165-A – Recusa a se submeter ao teste
A infração do art. 165-A é de mera conduta: consuma-se com o simples ato de recusar-se ao exame.
No entanto, a validade da autuação depende da regularidade do procedimento fiscalizatório e da observância da Resolução CONTRAN nº 432/2013, que exige o registro circunstanciado de eventuais sinais de alteração da capacidade psicomotora.

Sem esses registros, a autuação perde base fática e legal, pois a recusa isolada não prova risco, nem embriaguez presumida.
Nota interpretativa:
A tipificação da recusa não é presunção de culpa. Ela apenas legitima a sanção administrativa se e enquanto forem respeitadas as formas e finalidades legais do procedimento fiscalizatório.

3. A Resolução CONTRAN nº 432/2013 – O Parâmetro de Legalidade da Fiscalização
A Resolução nº 432/2013 do CONTRAN é a norma que operacionaliza a Lei Seca, definindo os critérios técnicos e formais de validade da autuação.
O artigo 5º da Resolução elenca os meios de comprovação da influência de álcool, dentre eles:
  1. teste do etilômetro;
  2. exame de sangue;
  3. sinais notórios de embriaguez;
  4. exame clínico;
  5. prova testemunhal, imagem ou vídeo.
O Anexo II da Resolução é de leitura obrigatória na prática defensiva: ele descreve os sinais de alteração da capacidade psicomotora e exige o preenchimento do Termo de Constatação de Sinais de Alteração.
Nota técnica:
A ausência desse termo ou o seu preenchimento genérico macula a materialidade do ato administrativo, violando o princípio da motivação (art. 50 da Lei nº 9.784/99).

Consequência jurídica:
Se não há constatação formal de sinais e o condutor apenas se recusou ao teste, a autuação carece de lastro probatório e deve ser anulada.

4. A Recusa e o Direito à Não Autoincriminação (Nemo Tenetur Se Detegere)
O artigo 5º, inciso LXIII, da Constituição Federal consagra o princípio segundo o qual “ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo”.
Este mandamento — nemo tenetur se detegere — é pedra angular do Estado de Direito e tem plena incidência no campo administrativo sancionador.

O Supremo Tribunal Federal, ao julgar o RE 1.224.374/RS (Tema 1.085), reconheceu que a recusa ao bafômetro pode gerar sanção administrativa, mas não implica confissão ou presunção de embriaguez.
Assim, o cidadão pode recusar o teste sem que essa negativa seja usada como prova de culpa.
Logo, a legalidade da penalidade do art. 165-A está condicionada ao rigor absoluto do procedimento administrativo, e não ao mérito da recusa.

Nota doutrinária:
“A sanção pela recusa, embora formalmente válida, não pode subsistir se o procedimento de autuação desrespeita o devido processo legal ou carece de motivação concreta. A ausência de sinais de embriaguez esvazia a finalidade preventiva da norma e transforma a punição em arbitrariedade.”

5. A Ausência de Sinais de Embriaguez como Eixo da Defesa Técnica
5.1. Elementos essenciais da análise do auto de infração
O advogado deve examinar atentamente:
  • a descrição de sinais (ou sua ausência) no auto de infração;
  • a existência e o conteúdo do Termo de Constatação;
  • a correspondência entre o enquadramento legal (165 ou 165-A) e os fatos observados;
  • a assinatura do agente e a motivação da autuação.
A omissão de sinais — especialmente quando o condutor apresentava comportamento normal — é argumento central para sustentar a desproporcionalidade e a nulidade do ato.
5.2. Teses Jurídicas Estratégicas
  1. Exercício legítimo de direito constitucional:
    A recusa é o exercício do direito à não autoincriminação, e não uma confissão velada. Punir tal conduta sem qualquer indício de embriaguez viola a liberdade individual e a presunção de inocência.
  2. Desproporcionalidade da penalidade:
    A sanção do art. 165-A reproduz as mesmas consequências do art. 165, equiparando quem dirige embriagado a quem apenas exerce um direito constitucional, sem qualquer risco concreto.
  3. Ausência de justa causa para a abordagem:
    Na falta de qualquer sinal prévio de embriaguez, a exigência do teste pode configurar abuso de poder e constrangimento indevido.
  4. Vício formal pela inobservância da Resolução CONTRAN 432/2013:
    A não lavratura do Termo de Constatação — quando obrigatória — gera nulidade absoluta do auto, por violação ao princípio da legalidade e à motivação do ato.

6. Doutrina e Jurisprudência Aplicadas
A doutrina majoritária tem interpretado o art. 165-A sob enfoque restritivo, reconhecendo a constitucionalidade da norma apenas quando respeitados os limites do devido processo legal.
Celso Antônio Bandeira de Mello:
“O poder de polícia não é licença para arbitrariedade; o dever de agir com base legal e razoável é o que distingue o Estado de Direito do mero poder.”

STJ – RMS 56.858/GO:
“A validade da autuação por recusa depende da observância do procedimento previsto na Resolução CONTRAN 432/2013 e da constatação dos sinais de alteração psicomotora.”

TJSP – ApCív 1012456-44.2021.8.26.0053:
“A ausência de descrição de sinais de embriaguez no auto de infração invalida a autuação por recusa, configurando vício formal insanável.”

STF – RE 1.224.374/RS (Tema 1085):
“A recusa ao teste do etilômetro pode ensejar penalidade administrativa, desde que respeitados os direitos fundamentais e o devido processo legal.”

7. A Tensão Entre Segurança Viária e Garantias Fundamentais
O embate entre segurança coletiva e liberdade individual não é novo, mas no campo do trânsito assume contornos agudos.
A Lei Seca, ao endurecer as penalidades, buscou reduzir acidentes e salvar vidas — mas esse objetivo não legitima a supressão de direitos constitucionais.

O Estado não pode exigir que o cidadão produza a própria prova de culpa, nem aplicar penalidades sem suporte probatório mínimo.
Assim, o equilíbrio reside na observância estrita das formalidades legais, e não na ampliação desmedida do poder punitivo.

8. Conclusão – A Técnica Jurídica como Escudo Constitucional
A defesa em casos de recusa ao teste do etilômetro sem sinais de embriaguez é a expressão mais sofisticada da advocacia constitucional aplicada ao trânsito.
O advogado atua não apenas para evitar uma multa, mas para restabelecer o equilíbrio entre autoridade e liberdade.

A não autoincriminação não é obstáculo à segurança viária — é a garantia que impede o Estado de ultrapassar os limites da razão e da justiça.
Quando o condutor é autuado sem sinais de alteração psicomotora e sem motivação concreta, o processo administrativo é nulo, e a penalidade carece de legitimidade.

“A defesa técnica é o escudo do cidadão diante da arbitrariedade burocrática.
A forma, quando protege a liberdade, é substância do Estado de Direito.”

Referências Normativas e Jurisprudenciais
  • Constituição Federal, art. 5º, incisos LXIII, LIV e LV.
  • Código de Trânsito Brasileiro, arts. 165, 165-A, 277 e 281.
  • Resolução CONTRAN nº 432/2013 e Anexo II.
  • Lei nº 9.784/1999, art. 50.
  • STF, RE 1.224.374/RS (Tema 1085).
  • STJ, RMS 56.858/GO; AgRg no REsp 1.182.340/RS.
  • BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 38ª ed. São Paulo: Malheiros, 2024.