Desvendando o Processo da Multa de Trânsito: Um Guia Passo a Passo
⚖️ Desvendando o Processo da Multa de Trânsito: Um Guia Passo a Passo
(Dupla notificação, prazos decadenciais e defesa técnica)
1. Introdução — A multa é o começo, não o fim
Receber uma notificação de trânsito não encerra a discussão: inaugura um processo administrativo sancionador com etapas e garantias. O eixo dogmático é o devido processo legal e o contraditório/ampla defesa (CF, art. 5º, LIV e LV), materializados no rito do CTB e na exigência de duas notificações obrigatórias (autuação e penalidade), consolidada pela Súmula 312 do STJ.
Tese-principal — Vício formal na dupla notificação (ausência, conteúdo essencial deficiente ou intempestividade) não é mera irregularidade: opera nulidade absoluta (art. 281, §1º, II, e art. 282, §§6º–7º, CTB), inviabilizando sanção e registro.
Nota interpretativa: a garantia não é ritualismo; é condição de validade do ato punitivo e de utilidade prática da defesa.
2. Marco normativo — O que a lei e a jurisprudência dizem
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CTB:
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Art. 280 – requisitos do AIT (auto de infração).
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Art. 281, §1º, II – NA (notificação de autuação) deve ser expedida em até 30 dias da infração; descumprido, arquivamento do AIT.
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Art. 281-A – NA deve conceder mínimo de 30 dias para defesa prévia.
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Art. 282, §§6º–7º – NP (notificação de penalidade) deve ser expedida em até 180 dias (sem defesa) ou 360 dias (havendo defesa); descumprido, decadência do direito de punir.
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§5º do art. 282 – prescrição quinquenal da cobrança após a NP.
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Resolução CONTRAN nº 918/2022 – consolida o rito procedimental, conteúdo e meios de expedição.
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Súmula 312/STJ – “No processo administrativo para imposição de multa de trânsito, são necessárias as notificações da autuação e da aplicação da pena.”
Conseqüência prática: falta de uma das notificações ou expedição fora do prazo invalida a sanção, independentemente de prova de prejuízo.
3. Etapa 1 — A primeira carta: Notificação de Autuação (NA)
3.1 O que é e para que serve
A NA comunica a lavratura do AIT e abre duas possibilidades estratégicas ao proprietário: (i) defesa prévia contra a autuação; (ii) indicação do condutor.
3.2 Prazo fatal (decadencial) de expedição
O órgão deve expedir a NA em até 30 dias da infração (CTB, art. 281, §1º, II). Prova-se pela data de postagem/expedição — não pela data do recebimento.
Descumprido o prazo: arquivamento do AIT e insubsistência do registro.
3.3 Conteúdo mínimo (checklist objetivo)
Para ser válida, a NA deve conter, ao menos:
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nº do AIT; data, hora e local da infração;
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tipificação (enquadramento CTB) com descrição do fato;
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identificação do órgão autuador e do agente/equipamento;
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prazo de defesa prévia ≥ 30 dias (art. 281-A).
Nota prática: ausência/deficiência de qualquer item é vício de conteúdo que compromete a utilidade da defesa e sustenta nulidade.
4. Etapa 2 — A segunda carta: Notificação de Penalidade (NP)
4.1 O que é e quando chega
A NP é a sanção (com boleto) e só nasce após o julgamento da consistência do AIT (indeferida ou ausente a defesa).
4.2 Prazos decadenciais (Lei 14.071/2020; CTB, art. 282, §§6º–7º)
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180 dias (se não houve defesa prévia).
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360 dias (se houve defesa prévia).
Marcos: contam-se da data da infração até a expedição da NP.
Descumprido: decadência do direito de aplicar a penalidade (art. 282, §7º).
5. Mapa do processo — Fluxo, prazos e direitos
| Fase | O que é | Prazo do órgão | Seu direito |
|---|---|---|---|
| NA (autuação) | Aviso da infração | 30 dias da infração para expedir | Defesa Prévia (≥ 30 dias) e Indicar Condutor |
| NP (penalidade) | Multa/boletos | 180 (sem DP) ou 360 dias (com DP) para expedir | Recurso 1ª instância (JARI) e 2ª instância (CETRAN/CONTRANDIFE) |
Legenda: “DP” = defesa prévia.
6. Defesa técnica — Convertendo conhecimento em resultado
6.1 Roteiro de verificação cronológica (linha do tempo)
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Data da infração → 2) data de expedição da NA (≤ 30 dias?) → 3) data-limite da DP (≥ 30 dias?) → 4) data de expedição da NP (≤ 180/360 dias?).
Qualquer descumprimento = nulidade/decadência.
6.2 Roteiro de verificação do conteúdo (utilidade da defesa)
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NA contém todos os elementos essenciais (item 3.3)?
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NP indica fundamentação do julgamento (motivação adequada)?
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Há prova idônea de expedição (rastreamento/AR/registro eletrônico)?
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Endereço estava atualizado no RENAVAM/DETRAN?
6.3 Formulação do argumento central (modelo objetivo)
“Requer o arquivamento do AIT nº … por violação do art. 281, §1º, II, CTB (NA expedida fora do prazo de 30 dias), com insubsistência do registro, à luz da Súmula 312/STJ. Subsidiariamente, pugna pela nulidade da penalidade ante a decadência do art. 282, §§6º–7º (NP expedida após … dias).”
Nota estratégica: evite alegações genéricas; aponte o vício específico, o marco temporal e o dispositivo legal.
7. Doutrina e jurisprudência — O porquê do rigor
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Dupla notificação como existência do processo: sem NA válida e NP tempestiva, não há ato sancionador legítimo (Súm. 312/STJ).
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Prazos do CTB são decadenciais: protegem eficiência e segurança jurídica. Ultrapassados, extinguem o poder de punir (art. 282, §7º).
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Prejuízo presumido quando a lei fixa prazo fatal: não se exige prova adicional de dano ao contraditório.
Citações úteis (síntese de entendimentos):
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STJ – intempestividade da NA → arquivamento do AIT.
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Tribunais Estaduais – extrapolação de 180/360 dias para NP → decadência; ausência de conteúdo mínimo → nulidade por cerceamento.
8. Caixas práticas — Erros comuns do órgão e como atacá-los
8.1 Intempestividade da NA (30 dias)
Prova: carimbo de expedição/postagem; relatório do sistema.
Tese: art. 281, §1º, II → arquivamento automático.
8.2 Intempestividade da NP (180/360 dias)
Prova: data da infração × data de expedição da NP.
Tese: art. 282, §§6º–7º → decadência do direito de punir.
8.3 Conteúdo deficiente da NA
Prova: ausência de tipificação, local/hora, prazo < 30 dias.
Tese: art. 280, art. 281-A e Res. 918/2022 → nulidade por cerceamento.
8.4 Falha de expedição/endereçamento
Prova: rastreio ausente; endereço correto no cadastro.
Tese: ônus probatório do órgão; ciência não aperfeiçoada → nulidade.
9. Perguntas frequentes (FAQ jurídico-operacional)
(a) O que vale é a data de envio ou de recebimento?
A data de expedição pelo órgão (postagem/registro eletrônico), não a de recebimento.
(b) Posso alegar decadência e, subsidiariamente, prescrição?
Sim. Decadência atinge a constituição da penalidade (30/180/360). Prescrição (quinquenal) atinge a cobrança após a NP válida.
(c) O órgão pode “refazer” a notificação fora do prazo?
Não. Em prazos decadenciais, não há convalidação: o poder de punir se extinguiu.
(d) Defesa prévia tem prazo mínimo?
Sim: ≥ 30 dias a partir da expedição da NA (art. 281-A).
10. Minuta-base (trecho pronto para adaptar)
Da nulidade por intempestividade da NA
A NA relativa ao AIT nº … foi expedida em …, ultrapassados … dias da data da infração (…/…/…). Nos termos do art. 281, §1º, II, CTB, impõe-se o arquivamento do auto e a insubsistência do registro, sendo inaplicável a penalidade. Súmula 312/STJ reforça a exigência do rito válido com dupla notificação.
Pedidos: (i) reconhecimento do vício; (ii) arquivamento do AIT; (iii) baixa de registros e pontuação; (iv) ciência ao RENAINF/DETRAN.
Da decadência na expedição da NP
Constatado o envio da NP em …/…/…, quando já decorrido prazo superior a … dias contados de …/…/… (data da infração), caracteriza-se a decadência (art. 282, §§6º–7º, CTB), com extinção do direito de punir e nulidade da sanção.
11. Conclusões
A dupla notificação e os prazos de 30/180/360 dias são limites constitucionais do poder punitivo. Não se trata de tolerar formalismos: trata-se de garantir defesa útil e segurança jurídica.
Como assentou o STF, ineficiência administrativa não autoriza suprimir garantias. A advocacia técnica transforma esse desenho normativo em resultados práticos: arquivamentos por intempestividade, reconhecimento de decadência e anulação de sanções mal constituídas.
12. Referências essenciais
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CF/88, art. 5º, LIV e LV.
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CTB (Lei 9.503/97), arts. 280, 281, §1º, II, 281-A, 282, §§5º–7º.
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Res. CONTRAN 918/2022 (processo administrativo de trânsito).
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Súmula 312/STJ (dupla notificação).
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Doutrina recomendada:
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Carvalho Filho, Manual de Direito Administrativo, 37ª ed., 2024.
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Di Pietro, Direito Administrativo, 36ª ed., 2024.
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Bandeira de Mello, Curso de Direito Administrativo, 38ª ed., 2024.
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